2.14.2008

Quantas crianças você vê pela rua do momento em que acorda até o que vai dormir? Quantas vezes você ouve por dia: "tio, dá uma moedinha?" ou qualquer outra variação nesse estilo, das mais dramáticas às mais absurdas: "tenho 12 irmãos, tá todo mundo com fome"; "tenho 12 anos e 12 filhos"; "minha mãe morreu e agora eu tô sozinho". Pare para pensar em quantas vezes você ouve isso? Nem sabe. Quem se importa, né? Ah, fala a verdade, você nem se importa com as crianças que batem no vidro do carro.

"É a tal da compreensão sócio-econômica chegando ao fim", alguém importante disse isso. E graças a deus! Que compreensão ridícula, que te faz (fazia) entender esse afogamento do progresso social. Agora, que já assumimos que somos cegos por opção, convido você para uma experiência.

Imagine acordar, ir pra varanda e não se deparar com nenhuma visão indigesta de crianças miseráveis. Imagine passear pelo comércio e não ver o futuro da nação jogado em bueiros fétidos. Imagine não ler no jornal que uma menina de 15 anos ficou presa numa cela com 20 homens. Imagine não ter que brigar quando aqueles pivetinhos chegam para limpar o pára-brisas do seu carro. Imagine sua cidade sem pichação. Imagine as ruas sem prostitutas e travestis. Isso é uma sociedade anos luz à frente da nossa, onde o aborto é entendido como uma necessidade social.

Aí, já devem estar me colocando viva na fogueira por acreditar que o aborto é a solução para tudo. Não, não é diretamente. Mas comece a pensar nas conseqüências. Com menos criança nascendo nas áreas de risco, mais dinheiro vai sobrar pras que já estão nascidas. Com menos criança crescendo, mais dinheiro vai sobrar para ser investido nas escolas. Com menos criança estudando e com mais dinheiro de investimento, a qualidade da educação vai melhorar. Com a qualidade da educação melhorando, menos jovens vão seguir a vida do crime. Com menos jovens seguindo a vida do crime e alimentando sonhos, menos filhos eles terão. E os poucos que terão, têm grandes chances de nascer em famílias estruturadas e com condição de vida, pelo menos, razoável.

E se você me disser que com o aborto só ia sobrar mais dinheiro para os políticos roubarem, eu ainda tenho uma resposta: com certeza, mesmo sem investimento nenhum, vão ter menos criança vivendo em situação de risco. Não existe crime contra a vida se a vida não existe. Mas existe, sim, crime contra a vida, quando é tomado de alguém o direito de ser feliz.

Achou pesado, não? Então vamos pensar na vida daqueles que perderam a oportunidade de ser abortados.

Uma história brasileira

Madalena tinha Aids, mas só descobriu com o nascimento do sexto filho, fraco e prematuro. Ao longo dos três meses que passou na incubadora, Madalena foi visitar o filho umas três vezes, é que ela esquecia, dava preguiça, sei lá.

Quando finalmente foi para casa, o bebezinho foi batizado de James Jackson pela avó, que encasquetou que ele era filho de um famoso cliente da filha, um alemão de cabelos claros.

Madalena nasceu em uma família de famosas prostitutas decadentes. A mãe e a tia eram índias fugidas para o Rio de Janeiro, onde viraram putas no calçadão. Moravam no mesmo barracão de um cômodo com os seus 22 filhos ao todo, que nem pareciam irmãos ou primos, de tão diferente que eram. Toda essa filharada vivia ao deus-dará, como comentavam os riquinhos que os viam pelas ruas. Assim, não foi difícil pegar o caminho errado. Aos 30 anos, Madalena não sabia onde estava a metade de seus filhos.

Madalena começou a se prostituir aos 14 anos, quando suas irmãs sumiram e a ela teve que sustentar a mãe que já estava com a "buceta foló", como costumava dizer. Nenhum de seus seis filhos teve infância, freqüentou escola ou conheceu o lazer.

Num sábado à noite, cansada de espancar os filhos por alguma trivialidade, Madalena deitou silenciosa na rede que herdara de sua mãe e morreu, manchada com o sangue milagrosamente saudável dos filhos. James, então, ficou órfão aos 10 anos. Resolveu, na sua cabeça infantil, mudar de vida, tentou ir para São Paulo. E foi buscando uma carona da beira da estrada, que ele conheceu o mundo. Chegou ao seu destino final depois de ser estuprado várias vezes pelo caminhoneiro velho e gordo.

Em São Paulo, se acotovelava com inúmeras crianças nas esquinas da Faria Lima para pedir esmolas, mas percebeu que o negócio não estava rentável. Seguiu o conselho de alguns amigos e foi se prostituir no Anhangabaú. Não era fácil, a polícia viviam em cima, foi detido várias vezes e encaminhado para orfanatos. Fugiu de todos, alguém acostumado a ser livre não podia, de repente, ter suas asas cortadas.

Os anos se passaram e ele conheceu uma garota, lá no Anhangabaú mesmo. Eles se apaixonaram, decidiram mudar de vida, trabalhar, casar e ter filhos. Aquela vida desregrada iria ficar para trás! Mas ela engravidou aos 15 anos e, por ser prostituta, ficava difícil saber quem era o pai. O aborto foi um fracasso e ela acabou por aumentar o índice de mulheres que morrem no Brasil por conseqüência de abortos ilegais.

James perdeu o chão de vez. Subiu o morro, começou a roubar, conheceu traficantes. Aos 18 anos, já tinha cheirado mais pó que a mãe durante a vida inteira. Felizmente não conseguiu assaltar nenhum banco. Na sua festa de admissão na maior gangue do país, morreu como Elis Regina, que sua mãe tanto gostava de ver na tevê.

James Jackson agora está enterrado, bem longe das nossas bolsas e do cú dos nossos filhos. Sua vida acabou assim como começou: silenciosa, esquecida e sofrida.

Achou a história mais pesada ainda, né?

Olhe a sua volta, ela pode estar sendo vivida por qualquer uma dessas crianças que passam todo dia por você, que você não olha, mas que olham para você.


"Aborto é uma questão de direitos humanos, saúde pública e justiça social"